"O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia". Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas
Os dias passam e a crise europeia continua se arrastando. Entramos em 2012 e não há sinais de que as turbulências terminarão. Momentos de alívio e até euforia nos mercados financeiros são seguidos por outros de quase pânico; observa-se uma ciclotimia com frequência e intensidade como há muito não se via.
O receituário predominante para se mitigar a crise tem sido ditado pela Alemanha, a qual preconiza que não há solução fora do ajuste fiscal dos países em crise. Resiste-se a um ajuste de dívidas com renegociações amplas e lançamento de eurobonds, com o Banco Central Europeu (BCE) passando a ser um devedor em última instância e a ter um papel mais proeminente na reorganização financeira dos países do euro, como clamam os líderes dos países em dificuldades. Tampouco se consideram ações pró-ativas de oxigenação das economias por meio de uma política monetária mais flexível, tal como a dos EUA, ou de políticas de incentivo à retomada da atividade econômica.
A região do euro carece de ajustes que vão muito além do orçamento equilibrado. Insistir nessa direção só adiará, com custos econômicos, sociais e políticos, a adoção de medidas que ofereçam alternativas críveis de recuperação e de crescimento sustentável
A exigência de forte controle orçamentário e a proposta de convergência fiscal podem ter implicações políticas imprevisíveis devido aos seus impactos sociais de curto prazo. A população classificada como pobre ou ameaçada de risco social já chega a 30% ou mais em alguns países da região. As disparidades nas taxas de desemprego revelam tanto a heterogeneidade dos países quanto a intensidade com que a crise tem afetado cada um deles. De fato, enquanto Espanha e Grécia registram desemprego de 22,9% e 18,8%, Áustria e Alemanha registram 4% e 6,4%, respectivamente. Mas é improvável que os países até agora menos afetados pela crise se mantenham protegidos dos seus efeitos a médio e longo prazos.
A situação requer soluções consensuais e permanentes para a reorganização financeira e econômica.
Não há, pois, por que indagar "por quem os sinos dobram", como disse o poeta britânico John Donne no século XVII. O foco no receituário de austeridade fiscal detona um ciclo vicioso em que cortes orçamentários restringirão ainda mais as receitas públicas, requerendo, por conseguinte, cortes adicionais de despesas. Assim, ajustes fiscais rigorosos "per se" não devem se sustentar e tampouco trazer confiança aos mercados, a não ser que sejam combinados com planos concretos para o "day after", quais sejam, políticas para a retomada do crescimento econômico e para o enfrentamento das heterogeneidades entre os países membros da zona do euro.
As elevadas desigualdades em áreas como produtividade, competitividade e estoque de capital por trabalhador se refletem nas balanças de pagamentos dos países. Esse é o ponto central da crise. Quase 40% do comércio alemão é feito com os países da região do euro e nada menos que 60% do saldo da balança comercial da Alemanha se origina das transações com aqueles países, o que mostra quão profundos são os desequilíbrios.
E essa situação não decorre do impacto da crise de 2008; vem de longe. No período 2000/2007, por exemplo, o resultado anual médio da balança em transações correntes da Alemanha foi de US$ 94,6 bilhões, enquanto para três dos países hoje situados no foco da crise (Portugal, Espanha e Grécia) o resultado negativo anual médio (dos três em conjunto) foi de US$ 32 bilhões. E para não ficar nestes, ressalte-se que no caso da França, o resultado foi um superávit de apenas US$ 4,4 bilhões (média anual 2000/2007). A disparidade dos números falam por si. A diferença dos perfis das balanças de pagamentos é tal que, em 2010, o superávit nominal total em contas correntes da Alemanha foi maior que o déficit conjunto de Espanha, Grécia, Itália, Irlanda e Portugal.
É importante recordar que o Tratado de Maastricht, de 1992, já havia explicitado compromissos de limites de déficits e da relação dívida/PIB, como se reitera agora com maior rigor. No entanto, nada foi estabelecido para o controle dos balanços de pagamentos, o que contribuiu para a desorganização orçamentária e financeira dos países do euro durante a crise financeira de 2008/2009. Muito embora os desequilíbrios e os problemas estruturais entre os países da região sejam anteriores à crise financeira, eles foram duramente agravados por ela.
Tudo isso indica que uma eventual recessão ou uma estagnação econômica na Europa deverá ter impactos não negligenciáveis na economia alemã, o que trará, por sua vez, novos obstáculos e impasses para a já frágil situação da zona do euro.
Merkel e Sarkozy discutiram nos últimos dias maneiras de incentivar o crescimento na região. É possível que algumas medidas compensatórias paliativas sejam anunciadas, mas é improvável que ações suficientes e compromissos que tratem dos desequilíbrios sejam assumidos.
Enfim, a região do euro carece de ajustes que vão muito além do orçamento equilibrado. Insistir nessa direção apenas adiará, com custos econômicos, sociais e políticos, a adoção de medidas que ofereçam alternativas críveis de recuperação e crescimento sustentável
Guilherme Lacerda é doutor em economia-Unicamp e ex-presidente da - Fundação dos Economiários Federais (Funcef)
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