segunda-feira, 26 de março de 2012

Brasil busca alívio cambial na OMC

Fonte: Valor Econômico
Autor: Assis Moreira

O Brasil quer pavimentar o terreno na Organização Mundial do Comércio (OMC) para a criação de um mecanismo de desafogo para um momento de valorização cambial excessiva, permitindo impor sobretaxa na importação para proteger sua indústria. A primeira grande discussão ocorrerá amanhã e quarta-feira, reunindo setor privado, governos, instituições internacionais e acadêmicos, na sede do xerife do comércio, em Genebra, num ambiente de fricções crescentes, causadas por desvalorizações competitivas de moedas e retração da demanda global.

Em entrevista, o embaixador brasileiro na OMC, Roberto Azevedo, diz que o Brasil precisaria de uma tarifa de importação de 180% para dar a mesma proteção que a tarifa de 35% oferecia antes da Rodada Doha, em 2001. É com essas cifras que ele enfatizará amanhã na OMC a que ponto o câmbio deteriorou a competitividade da indústria brasileira.

Nesse cenário, Azevedo reage com vigor à afirmação do diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, de que não estaria claro se o câmbio afeta o comércio. Para o representante brasileiro, trata-se de argumento de quem "quer conturbar e confundir" a discussão. Afinal, nota ele, estudo da própria OMC mostrou o impacto dos desalinhamentos cambiais no curto prazo para setores específicos da economia. "E isso exige remédio", disse.

Na mesma linha, a Agência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) discutirá já hoje mudanças no comércio internacional, com ênfase no câmbio no Brasil. O estudo para discussão estima que a excessiva valorização do real chegou a 80% em abril de 2011 em relação a um nível "ótimo" de longo prazo. Os autores, os economistas André Nassif, do BNDES e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carmem Feijó, da UFF, e Eliane Araújo, da Universidade Estadual de Maringá, sugerem uma meta para o câmbio, para o país alcançar a taxa "ótima" real de longo prazo, definida como aquela que induz à alocação de recursos para os setores de maior produtividade da economia. A seguir, os principais trechos da entrevista com Azevedo:

Valor: O que o Brasil espera dessa discussão sobre câmbio na OMC?

Roberto Azevedo: Os mecanismos atuais da OMC são muito poucos e muito limitados numa situação de câmbio desalinhado. As regras foram desenhadas ainda nos tempos de moeda fixa e são insuficientes para garantir proteção à indústria nessas circunstâncias. Não existe na OMC um mecanismo específico, como salvaguarda, por exemplo, para reagir a desvalorizações competitivas de moedas. É necessário atualizar as disciplinas da OMC e isso só acontece negociando regras também sobre câmbio.

Valor: Ou seja, um antidumping cambial?

Azevedo: Nossa expectativa é de que os passos sucessivos dessa discussão na OMC conduzam inevitavelmente à negociação de um mecanismo de desafogo em situações de desalinhamento cambial de curto prazo.


Valor: A questão cambial já foi tratada no sistema multilateral de comércio.

Azevedo: Sim, o Gatt (que antecedeu a OMC) tratou e desenvolveu disciplinas sobre o assunto. Por exemplo, nos anos 90 tomou decisão que permite o reajuste de direitos específicos, que são tarifas de importação fixadas em valor monetário por unidade. A decisão permite que o país tenha o direito de aumentar essa tarifa de importação específica, quando uma moeda se desvaloriza rapidamente.
Valor: Por que o Brasil não faz uso então dessa possibilidade?

Azevedo: O Brasil não tem em sua tabela de compromissos nenhuma tarifa desse tipo, somente tarifas ad valorem (percentual). Nada impede que desenvolvamos mecanismo similar para as tarifas ad valorem.

Valor: Como superar suspeitas de alguns parceiros de que o Brasil busca pretexto para as medidas de proteção que vem adotando?

Azevedo: Seria até ingênuo imaginar que reclamações sobre câmbio não têm relação com comércio. Em todas as grandes negociações globais sobre câmbio o comércio estava como pano de fundo. Isso é nítido quando o presidente Nixon, em 1971, deixou de autorizar a conversão do dólar em ouro. No mesmo momento, ele impôs sobretaxa de 10% em todas as importações americanas. A reclamação na época era de que a valorização do dólar estava favorecendo a indústria estrangeira em detrimento do emprego nos EUA. A relação câmbio/comércio nunca deixou de existir. Inclusive em seguida o assunto foi para o Gatt. A discussão não prosperou porque ali ninguém estava disposto a entrar numa guerra comercial. Tentou-se encontrar uma acomodação, que resultou num acordo internacional, o Acordo Smithsonian, levando a um realinhamento cambial, desvalorizando o dólar. Em 1985, o Acordo Plaza levou a uma desvalorização do dólar entre 20% e 50% contra o marco alemão, o iene japonês e o franco francês. Dois anos depois foi necessário outro acordo, o do Louvre, para estabilizar a moeda americana, que já estava em franco declínio. Todas essas negociações tiveram início com reclamações fortíssimas dos setores industrial e laboral dos EUA.

Valor: Como o Brasil reage então ao diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, que diz que não está claro se o câmbio afeta o comércio?

Azevedo: Isso é querer tapar o sol com a peneira. Estudos da própria da OMC, publicados em setembro de 2011, deixam inequívoco que desalinhamentos cambiais têm claro impacto no curto prazo para setores específicos da economia. Quando se quer conturbar e confundir essa discussão, argumenta-se que no longo prazo não há consenso de que o desalinhamento cambial é nocivo e retira a competitividade etc. Mas esse longo prazo aí é coisa de 15, 20 anos e até lá todo o sistema produtivo já se ajustou ou quebrou de vez. Outro argumento é de que a volatilidade do câmbio ao longo dos anos não diminui os fluxos de comércio. Isso pode até ser verdade. Mas não é isso o que o Brasil está procurando tratar na OMC. O que queremos é que a OMC reconheça, como seu próprio estudo diz, que, quando há uma mudança significativa de patamar na taxa de câmbio, seguramente há um impacto de perda de competitividade em determinados segmentos da indústria do país que sofreu a valorização. Isso exige remédio. É evidente que nem todos os setores da economia são afetados da mesma forma. Isso não significa que não existam empresas ou setores que precisam de algum tipo de proteção mais imediata.

Valor: Qual a dimensão do impacto do câmbio sobre as exportações, que o país mostrará na OMC?

Azevedo: Vamos mostrar que a forte perda de competitividade, no rastro do desalinhamento cambial no Brasil pode conduzir a fechamento de empresas e aumento do desemprego. A cadeia de efeitos é ampla sobre o nosso parque produtivo. É por isso que desejamos algum mecanismo de alívio na OMC. O Brasil vai mostrar uma desvalorização cambial de magnitude várias vezes superior à proteção tarifária máxima de 35% que tem como compromisso na OMC. Fizemos um cálculo no ano passado que apontou que o Brasil precisaria de tarifa de importação de 180% para dar a mesma proteção que a tarifa de 35% oferecia antes da Rodada Doha, em 2001. Com a desvalorização recente do real, passando para um patamar de 1,80 por dólar, esse percentual terá caído. Mas a proteção que nossa indústria precisaria é de vários múltiplos de 35%.

Valor: Nesse cenário, o Brasil poderá aumentar para além de 35% o teto das tarifas de importação?

Azevedo: Com exceção dos mecanismos de defesa comercial (salvaguarda, antidumping, direitos compensatórios), isso apenas é possível com a reconsolidação da tarifa que consta da nossa tabela de compromissos na OMC. A reconsolidação acontece na OMC, mas é muito pontual, para um ou outro produto. Numa situação de desalinhamento cambial, é muito difícil resolver o problema por aí. Primeiro, teríamos que aumentar milhares de tarifas. Segundo, teríamos de pagar compensações aos parceiros, e não são pequenas. Seria muito difícil manobrar uma reconsolidação dessa envergadura. Além disso, a reconsolidação tarifária, para mais de 35%, se tornaria permanente. Ora, o que queremos é um desafogo para momentos de valorização cambial excessiva.

Valor: Não existe o risco de o antidumping cambial deflagrar mais guerra comercial, com barreiras por todo lado?

Azevedo: Não, porque inevitavelmente a discussão sobre esse mecanismo vai procurar circunscrever ao máximo sua utilização e diminuir ao máximo seu impacto sobre o comércio. Não se pode ter uma visão imediatista, na situação em que estamos vivendo apenas hoje. O real é hoje uma moeda muito valorizada, como a de outros emergentes. Mas, historicamente, a situação foi inversa, como nas crises do México, da Rússia, dos asiáticos, em que os capitais saíram subitamente e nossas moedas despencaram. O mecanismo tem que ser adequado para as duas situações, de câmbio alto ou baixo. Não queremos que, mais adiante, as exportações brasileiras sofram barreiras desnecessárias quando o câmbio estiver em patamares mais baixos.

Valor: Qual o apoio que o Brasil tem sobre câmbio na OMC?

Azevedo: No começo, foi muito pouco. Num esforço enorme, tivemos que convencer cada delegação de que estávamos criando uma oportunidade e não mais polêmicas. Felizmente conseguimos que boa parte apoiasse a abertura do debate e outros não objetassem. Na medida em que os parceiros percebem que não buscamos uma negociação açodada, de afogadilho, e sim bem pensada, com objetivos sistêmicos bem definidos, a cautela e receio diminuem. No começo era só o Brasil que falava, os outros ficavam na escuta. Existem delegações cautelosas, mas o quadro está mudando.
Valor: Só que os EUA e a China, com fricções bilaterais sobre câmbio, também não querem o tema na OMC. Isso já não mata a iniciativa?

Azevedo: Esse quadro é muito fluido. Mesmo esses dois países têm evoluído em suas abordagens. Posturas mais reativas vêm muito do temor de que a discussão saia do controle e seja usada para fins políticos, apontar culpados, recriminar determinadas ações no mercado financeiro. Não é o que buscamos.

Valor: Quais serão os próximos passos, após o seminário?

Azevedo: Gostaríamos de examinar já no segundo semestre, como o sistema multilateral do comércio tratou do assunto, como reagiu. Com base nessas análises, caberia passar a olhar para o futuro. Como atualizar as regras da OMC. Para o Brasil, quanto mais rápido melhor. Mas não vai ser fácil. Temos que seguir o ritmo de uma organização com mais de 150 países e que trabalha com base no consenso.

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