A crise internacional de 2008/09 foi quase sem precedentes e a reação também teve que ser proporcionalmente enérgica. Costurou-se uma combinação de estímulos monetários e fiscais de forma a promover uma política keynesiana para reverter a queda do produto. Entretanto, a margem de manobra fiscal e monetária era limitada. Por um lado, no passado, a política fiscal não fora perfeitamente anticíclica, mas sim enviesada para o lado do gasto. Por outro lado, o espaço para estímulos monetários também era reduzido, já que a combinação de juros baixos com inflação baixa, numa conjuntura recessiva, rapidamente levou alguns países a uma armadilha de liquidez.
Criou-se, assim, o espaço para relaxamentos monetários heterodoxos ("quantitative easing", ou simplesmente QE) que miram os agregados monetários. De fato, relaxamentos monetários acabaram sendo adotados por diversos países desde a crise de 2008/9. O que é novidade hoje é a sincronização da implementação dos mesmos.
A liquidez assim gerada no mundo desenvolvido acabará por transbordar para as economias emergentes, atraída por melhores perspectivas de crescimento e por maiores taxas de juros. Por sua vez, esse fluxo de entrada de divisas estrangeiras gera uma pressão por apreciação cambial das moedas dos emergentes que seria equivalente a um aperto monetário. Assim, um novo equilíbrio seria gerado com moeda mais forte e menor crescimento nos emergentes.
O problema é que os países emergentes não querem deixar suas moedas se apreciarem frente às moedas dos países que estão fazendo o relaxamento monetário e tampouco pretendem desaquecer mais suas economias. Os bancos centrais emergentes encontram-se assim num dilema: pretendem evitar a apreciação de suas moedas, via controle de capitais e intervenções no câmbio, mas, ao fazerem isso, diminuem o ímpeto do processo de arbitragem internacional que geraria uma taxa de juros mais baixa internamente. Portanto, a estratégia dos emergentes acabará gerando queda dos juros numa conjuntura de pouca apreciação de suas moedas e ambiente favorável ao aumento das taxas de inflação.
O maior nível de atividade desses países poderia gerar algum equilíbrio via deterioração de seus balanços de pagamentos (via aumento das importações e diminuição das exportações), mas tal efeito fica limitado pela manutenção de taxas de câmbio artificialmente desvalorizadas e de um possível aumento do protecionismo. Portanto, a correção dos desequilíbrios existentes provavelmente se dará da pior forma possível: via aumento das taxas de inflação.
Estamos, dessa forma, caminhando para um mundo mais leniente com o risco inflacionário. Nos países sob relaxamento monetário, a expectativa é de que o aumento da liquidez gere inflação no futuro, enquanto que nos emergentes a combinação de câmbio controlado com inflação de custos (via commodities) gera mais inflação hoje. Estamos também caminhando para um mundo com menos restrições fiscais nos emergentes e com mais restrições fiscais nos avançados. Do ponto de vista dos emergentes, e do Brasil em particular, fluxos abundantes de capital ajudam a aliviar as restrições fiscais domésticas. É necessário que o Brasil seja responsável do ponto de vista fiscal para não padecer do mesmo mal que os países desenvolvidos se encontram hoje, quando precisam dar estímulos fiscais e não podem devido ao histórico de aumento do endividamento ao longo dos anos. Ainda que os ajustes fiscais brasileiros recentes tenham sido bastante tímidos, eles representam passos na direção correta.
Estamos ainda caminhando para uma mudança na forma como a política monetária é hoje conduzida. Desde a década de 1990, havia um consenso implícito de que o sistema de metas de inflação, cujo instrumento primordial é a taxa de juros, balizava melhor as decisões de política econômica. Hoje, os juros se tornaram ineficazes em alguns países desenvolvidos por conta de armadilhas de liquidez, enquanto que na maior parte do mundo emergente a arbitragem de juros vem gerando "indesejável" aperto monetário por meio da apreciação cambial.
Dessa forma, instrumentos heterodoxos de política monetária vêm ganhando espaço ao redor do mundo. Além disso, análises recentes sobre a crise de 2008/09 apontam para um maior escopo de atuação dos bancos centrais, notadamente para manter a estabilidade financeira. A preocupação é legítima e engendra novos objetivos para a autoridade monetária que podem ser incorporados de maneira relativamente simples nas funções de reação dos bancos centrais.
Nesse ponto, vale ressaltar, contudo, os resultados de Bernanke & Gertler (2000, 2001): bancos centrais que respondem agressivamente à inflação estabilizam melhor o crescimento econômico comparado a bancos centrais que também respondem a bolhas em preços de ativos. Além disso, essas funções de reação ampliadas podem, por vezes, implicar maior inflação, já que é possível que os objetivos de política monetária e de estabilidade financeira sejam temporariamente conflitantes.
A preocupação maior é também que essa mudança institucional possa abrir espaço para uma leniência maior ao risco inflacionário nos países emergentes (notadamente no Brasil), onde preocupações sobre a estabilidade financeira possuem dimensão e natureza distintas.
Felipe Tâmega é economista-chefe do Banco Modal.
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