quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

OMC ataca protecionismo brasileiro para automóveis

Fonte: Valor Econômico
Autor: Assis Moreira
O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, vê com preocupação políticas comerciais adotadas pelo Brasil sem amparo nas normas da OMC, principalmente medidas que aumentam exigências de conteúdo nacional nos automóveis produzidos no país. Em entrevista ao Valor, ele sugeriu que o país tem uma série de outras ações que pode adotar para o desenvolvimento da indústria automotiva nacional, como melhora da produtividade, qualificação e infraestrutura.

"No momento não vejo outros países exigindo conteúdo local, fora a Argentina, mas há um risco [de outros copiarem as medidas brasileiras]", disse Lamy. Ele fez as declarações às vésperas da conferência ministerial que terá participação de mais de 60 ministros, em Genebra, amanhã e sexta-feira. Os ministros Antonio Patriota, das Relações Exteriores, e Fernando Pimentel, do Desenvolvimento, chegam hoje a Genebra e deverão insistir na necessidade de introduzir regras sobre câmbio na OMC. Lamy, porém, mantém a posição de que o tema deve ser tratado no FMI.

 

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, mostra inquietação com a nova política comercial brasileira, mais defensiva. E especialmente com uma medida adotada pelo país: a exigência de conteúdo local nos automóveis produzidos no país. Ele não diz explicitamente, mas para as regras da entidade isso é ilegal. O temor na OMC é que, pelo peso do Brasil, outros países copiem a medida protecionista num cenário econômico globalmente já complicado.

"Supondo que é preciso desenvolver a indústria automotiva no Brasil, há uma série de medidas possíveis para isso - melhora da produtividade, qualificação, infraestrutura -, mas o que vejo sobretudo é exigência de conteúdo local", afirmou Lamy, em entrevista ao Valor, na véspera da conferência ministerial que trará mais de 60 ministros a Genebra, amanhã e sexta-feira.

Os ministros Antonio Patriota, das Relações Exteriores, e Fernando Pimentel, do Desenvolvimento, estarão em Genebra, a partir de hoje, insistindo na necessidade de introdução de câmbio nas regras da OMC. Mas Lamy deixou claro que ninguém está pedindo esse tipo de negociação e avisa, mais uma vez, que o tema de divisas é com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Ele critica a gestão da crise da zona do euro e nota que a Europa terá crescimento fraco por cinco anos. A dúvida é se isso pode se estender por até dez anos. Somado à crise nos EUA, no Japão e menos crescimento na China, o resultado é que a economia do Brasil também está fragilizada.

Lamy observa que a desaceleração econômica está ocorrendo em todo lugar, não poupando ninguém. E que o único indicador que não está em linha com o que se diz em todo lugar é o mercado de matérias-primas. Pelo momento, não caiu fortemente, o que ele julga ""surpreendente e curioso"".

Nesse cenário, o diretor da OMC aponta fragilidade do comércio exterior do Brasil, com as commodities representando agora 65% das exportações, comparado a cerca de 40% há dez anos.

A seguir, os principais trechos da entrevista:


Valor: Como o sr. vê o desfecho da crise na Europa?

Pascal Lamy: Há uma crise mundial, que piora. Mais o tempo passa, mais a crise afeta todo mundo. Ninguém está imune à crise, que se agrava. Uma das razões do agravamento é que ela é mal gerida coletivamente. Há uma crise global, e nela há outra, que é a crise de gestão da crise. E o que se passa na Europa é nada mais que um laboratório, como ela, aliás, sempre foi. É o único sistema de poder supranacional, sério. Veja o que se passa no mundo e chegará a essa conclusão. Só que na Europa isso se vê mais, porque já é constituída como um conjunto supranacional.

Valor: Ou seja, é a crise de 2008 que se aprofunda.

Lamy: Claro. E uma das razões principais de aprofundamento da crise é que a capacidade de administrá-la coletivamente diminuiu. Sabemos, porque há uma crise no interior da crise. Para cooperar no plano internacional é preciso muito mais energia política, mais do que é necessário no plano nacional. A legitimidade é uma função de proximidade. Se um prefeito quer fazer algo ele está em relação direta com as pessoas e seus problemas. Em nível de nação é mais complicado. O problema é que a crise, que provoca turbulências e sofrimentos econômicos e sociais, reduz a legitimidade dos governos a fazer coisas em geral, e no plano internacional, em particular.

Valor: O fato é que a crise está centrada na Europa atualmente....

Lamy: Está focada na Europa, porque há um teatro europeu, que é muito animado. O nível de endividamento da Europa não é pior que o dos EUA ou do Japão. No Japão, faz dez anos que isso dura. Na Europa, os governos têm muita dificuldade para reinventar o pacto de estabilidade, depois de tê-lo quebrado em 2003. Quando criaram a união monetária e econômica, sabiam que ela era monetária, mas não muito econômica. Inventaram na época o pacto de estabilidade, que era um sistema de disciplina fiscal e orçamentária, e foi o que os alemães conseguiram então. Em 2003, Jacques Chirac [que era o presidente francês] e Gerhard Schröder [chanceler alemão na época] quebraram o pacto de estabilidade. Agora, os países-membros estão reinventando o pacto em situação difícil, porque se produz essa sinergia temível entre a dívida soberana e a saúde do sistema financeiro. Como os bancos têm muitos títulos soberanos em seu portfólio, se a dívida soberana tem problemas, os bancos também têm problemas. É preciso adotar medidas duras, tipo bazuca, e é muito complicado. Mas a situação na Europa não é fundamentalmente diferente do que se passou no Japão e do que pode ocorrer nos Estados Unidos.

Valor: O que falta é o Banco Central Europeu agir de fato como emprestador em último recurso?

Lamy: Não é o essencial. Nem a cultura europeia, nem os estatutos do BCE, nem a posição europeia na economia mundial oferecerão soluções, dizendo que basta imprimir moeda. É preciso fazer reformas. Na Itália, não foi imprimindo moeda que Mario Monti conseguiu reduzir o prêmio de risco.

Valor: Ou seja, é uma questão de credibilidade?

Lamy: Absolutamente.

Valor: O que o FMI pode fazer para socorrer a Europa?

Lamy: A economia é de tal tamanho que o FMI não pode salvar a Europa. São os europeus que podem salvar a Europa.

Valor: Mas como sair da crise? Os governos tomam decisões e os mercados dizem ser insuficientes. Parece um confronto entre mercados e governos.

Lamy: Não sou um apóstolo muito convencido do capitalismo de mercado. Mas se você pega dinheiro emprestado junto a alguém, não pode acusá-lo de se preocupar em ser reembolsado. Se os Estados não querem estar nas mãos do mercado, então que não peguem emprestado dos mercados. É política de botequim esse comportamento, que consiste em fazer "road show" em Londres, na segunda-feira, para convencer os investidores financeiros a comprar seus títulos de dívida, e reagir, acusando os mercados de especuladores, quando na terça-feira os mercados questionam se essa dívida é tão boa como foi dito.

Valor: Mas como os europeus vão sair dessa situação?

Lamy: Não creio que a zona do euro vai explodir. Não digo que a probabilidade (de explosão) é zero, como teria dito há dois anos. A zona do euro vai perdurar. Mas o que significa para o resto do mundo é que a Europa terá crescimento fraco pelos próximos cinco anos. A incerteza é se será por cinco ou dez anos. O problema é encontrar o bom mix de políticas. É evidente que é preciso reduzir a dívida, portanto cortar despesa publica e aumentar impostos, senão não há saída. Mas, ao mesmo tempo, quanto menos crescimento, mais tempo demorará a saída da crise.

Valor: Como ficará a Europa a duas velocidades? Um país, o Reino Unido, está agora isolado, fora do acordo de disciplina fiscal.

Lamy: Mas sempre houve uma Europa com várias velocidades. O euro é um sistema com várias velocidades, o Schengen [convenção entre países europeus sobre abertura das fronteiras e livre circulação de pessoas] também, assim como programas de pesquisa etc. Não é uma novidade.

Valor: O que parece claro é que a União Europeia terá de falar mais alemão no futuro.

Lamy: A Alemanha é o maior país da Europa desde a reunificação, tampouco isso é novo.

Valor: Quais as perspectivas para os EUA e o Japão?

Lamy: O Japão toma muito tempo para sair da crise. E os EUA vão ter de resolver seu problema de dívida só imprimindo o dólar, porque há limite para isso. O problema está diante de nós.

Valor: O que se pode fazer globalmente para buscar soluções para a crise?

Lamy: Estamos num sistema interdependente, e essa interdependência tem virtudes, se a explorarmos. Caso não a exploremos, os inconvenientes são maiores que as vantagens. Veja o que aconteceu em Durban [na negociação de acordo sobre mudança climática], apesar do esforço do Brasil.

Valor: Mas lá houve um pequeno acordo.

Lamy: (pausa). É mesmo?

Valor: O mercado aponta a China como futura ameaça para a economia global. Há risco de aterrissagem forçada da economia chinesa?

Lamy: Numa economia global, se a Europa tem crescimento fraco, o resto do mundo é afetado. Mas a China vai controlar a redução de seu crescimento. Sua dívida pública é de apenas 25% do PIB. Passar de 10% a 8% é perfeitamente controlável. Mas é claro que dois pontos percentuais a menos de expansão é muito. É verdade que os chineses são menos dependentes da Europa e dos EUA do que há dez anos. Quando EUA, Japão e Europa são atingidos, é metade do crescimento mundial que é afetado. Mas, no momento, a desaceleração econômica está ocorrendo em todo lugar.

Valor: Pode-se esperar da China menos exportação e mais importação?

Lamy: Sim. É a política chinesa. Estive com o presidente Hu Jintao e ele repetiu que a política é de equilibrar a economia com mais crescimento interno e menos exportação.

Valor: Mais queda no comércio global será inevitável em 2012?

Lamy: Sem dúvida. Diante das cifras de crescimento global, não vejo como o comércio em volume poderá aumentar mais do que este ano. Deve-se esperar menos do que este ano [a projeção da OMC é de 5,8% em 2011].

Valor: E com isso mais desemprego, mais disputas comerciais...

Lamy: Claro, claro. O único indicador que não está em linha com o que se diz em todo lugar é o mercado de matérias-primas. Pelo momento, não caiu fortemente, o que é surpreendente e curioso de um certo ponto de vista.

Valor: Para o Brasil, cujas exportações são em 65% compostas de commodities, a situação é complicada.
Lamy: Sim, é frágil. Mas para se tomar o caso da China, que é importante nesses 65% de exportação do Brasil, se os chineses elevarem o consumo interno, vão precisar importar commodities.

Valor: A China é uma oportunidade ou uma ameaça para países como o Brasil?

Lamy: Em chinês, oportunidade e ameaça têm o mesmo ideograma. Estive ontem [segunda-feira] na China para a comemoração dos dez anos da entrada do país na OMC. Sua política é de continuar a abertura. A China aumentou suas importações em 20% ao ano, nos dez anos como membro da OMC. É um percentual que nenhum outro país no mundo fez. Eles estão mudando o modelo. Mas leva tempo. Seu superávit exterior diminuiu e nos próximos anos será menor.

Valor: Como a OMC vê a nova política comercial brasileira, mais defensiva?

Lamy: É claro que as autoridades brasileiras resistem menos a pressões protecionistas do que no passado. Isso está explicitado no nosso monitoramento. É um fato. A questão é se é problema da relação de força que mudou, de forças protecionistas mais fortes do que as não protecionistas, ou uma política global de desenvolvimento do Brasil que não é mais a mesma. Eu não tenho resposta a isso. As informações que recebo não respondem claramente a essa questão.

Valor: O governo responsabiliza o câmbio, o real valorizado.

Lamy: Mas a taxa de câmbio é submetida a muitas variáveis. Por exemplo, a taxa de juros no Brasil. Se os juros são elevados, em geral atraem capital, sobretudo quando se diz que se luta contra a inflação. Ou seja, isso não é totalmente límpido. Quando vejo políticas comerciais adotadas pelo Brasil, deixo de lado instrumentos de defesa comercial - antidumping, salvaguardas -, pois todo mundo tem direito de fazer isso, se correspondem aos procedimentos da OMC. Mas restam ainda medidas de conteúdo local bastante evidentes. Supondo que é preciso desenvolver a indústria automotiva no Brasil, há uma série de medidas possíveis para isso - melhora da produtividade, qualificação, infraestrutura -, mas o que vejo sobretudo é exigência de conteúdo local.

Valor: O sr. está preocupado com essa postura do Brasil?

Lamy: Sim. E é claro que há risco de outros países copiarem o Brasil. No momento não vejo outros países exigindo conteúdo local, afora a Argentina, mas há um risco. Esse tipo de política pode levar outros a fazer a mesma coisa.

Valor: O sr. vê espaço para se começar a negociação de regra que leve em conta variação cambial no comércio internacional?

Lamy: Mas temos regras. Temos o artigo 15 do Gatt [que trata de medidas de câmbio], que nunca foi testado em contencioso. E o Brasil quis reiniciar essa discussão, estamos rediscutindo.

Valor: Há chance de negociação de regra sobre câmbio na OMC?

Lamy: Não estamos lá. Ninguém disse que é preciso submeter aos ministros um mandato de renegociação do artigo 15. Nunca ouvi isso de ninguém. Mas há uma discussão sobre o tema e ninguém se opôs quando o Brasil a propôs.

Valor: O sr. se surpreende com o rechaço do Brasil a eventual acordo para congelamento de tarifas de importação, às vésperas da ministerial da OMC?

Lamy: Quando vejo a evolução recente da política comercial brasileira, estou menos surpreso do que estaria há dois anos. Sobre o ""standstill"", não há definição precisa do que é protecionismo na OMC. É um problema de interpretação.

Valor: Na ministerial desta semana, a Rússia entrará na OMC. Há risco de a OMC ficar ainda mais ingovernável, já que a Rússia não tem costume de respeitar regras?

Lamy: É claro que a Rússia precisará de um tempo de adaptação, como ocorreu com outros. Mas o fato de a Rússia ter aceitado disciplinas multilaterais é algo bom para todo mundo. A Rússia teve 18 anos para se preparar, mesmo se a preparação, como no caso da China, foi mais ativa nos últimos anos. Mas os dois casos não são comparáveis. A relação da Rússia com a economia internacional é totalmente diferente daquela da China.

Valor: A Rússia entra na OMC como país desenvolvido e com direito a dar mais subsídios agrícolas por vários anos.

Lamy: Deixo a você a responsabilidade de considerar que a Rússia entra como país desenvolvido. Sou um dos raros a ter lido todo o protocolo de adesão e não vejo em lugar nenhum a Rússia dizendo que é país desenvolvido. Os compromissos que assumiu são, no geral, dez anos depois da China, mais duros do que aqueles assumidos pela China em alguns pontos, como na redução de tarifas e mesmo subvenções, e em certos setores de serviços. Na OMC, ser desenvolvido ou em desenvolvimento, é o país que decide. A Coreia, a Turquia, são, ao mesmo tempo, desenvolvidos e em desenvolvimento, a OMC é bastante tolerante, contrariamente à sua reputação.

Valor: Quando o sr. fala da necessidade de definir que tipo de contribuição emergentes, como Brasil, China e Índia, deveriam dar numa rodada, agora ou futura, não seria criar nova categoria de membros?

Lamy: Não. Não temos categoria de países na OMC, a não ser os PMA (países mais pobres), com tratamento especial e diferenciado.

Valor: Mas os emergentes deveriam pagar mais, fazer abertura comercial maior?

Lamy: Se você olhar os países que na negociação industrial devem adotar a fórmula [de corte tarifário], verá que não é para todos. Mas não significa criar categoria de países.

Valor: Mas o Brasil, em qualquer negociação comercial na OMC, passará a pagar mais?

Lamy: Mais que o Camboja. O mundo mudou, todo mundo reconhece. O Brasil nunca disse que quer ser tratado como Quênia ou Senegal na Rodada Doha. O importante é encontrar o bom equilíbrio entre reciprocidade e tratamento especial e diferenciado. Isso é algo a ser reinventado permanentemente.

Valor: Com a economia global em dificuldade, o que a conferência ministerial da OMC pode fazer para dar algum estímulo aos negócios?

Lamy: Precisamos explicar aos ministros o que eles têm dificuldades a identificar, ou seja, quanto menos eles trabalharem juntos, mais penosa e longa será a crise. Todo mundo está de acordo que, do ponto de vista do funcionamento da economia global, mais crescimento pode vir com abertura comercial. A vantagem é que não custa dinheiro aos contribuintes e ao Banco Central. O inconveniente é que exige reformas para ser mais competitivo.

Valor: O que ocorrerá na OMC após a ministerial? Não haverá negociação no ano que vem.

Lamy: Vamos esperar o que os ministros dizem. Não vamos condená-los de antemão. É preciso que examinem toda a atividade da OMC, e não apenas negociações.

Valor: Resumindo, para os próximos anos, qual é seu diagnóstico para a economia mundial?

Lamy: Estou cautelosamente pessimista.

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