segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A ARMA SECRETA DA CHINA

Excelente artigo publicado na Revista Veja (19/12/2011), relata qual a "arma" utilizada pela China para se tornar uma potência mundial. Investir na educação, é investir em saúde, segurança pública, cultura, etc. Enfim, o investimento em educação reflete em todos os setores de um país. Está na hora de nossos governantes reverem suas prioridades. Educação é um investimento de longo prazo, mas com certeza o mais eficiente.



A ARMA SECRETA DA CHINA

ARMAS DE EDUCAÇÃO EM MASSA
Autor(es): GUSTAVO IOSCHPE
Veja - 19/12/2011

Em cinco capítulos, conto como a verdadeira arma da China para se tornar potência mundial é seu sistema educacional baseado no mérito. Que grande lição para nós no Brasil!

Capítulo 1: Os alunos e seus pais

A história de Sun Juntao, de 16 anos, é uma entre milhões do fabuloso arsenal de educação em massa que une escolas, alunos e pais na China

Encontrei Sun Juntao, 16 anos, às 7h30 da manhã perto do ponto de ônibus onde desembarcava, em uma das tantas largas e movimentadas avenidas de Xangai, a maior metrópole chinesa. A caminho de sua primeira aula do dia, de matemática, Juntao estava paramentado com roupas de marcas esportivas, ostentava um ralo bigodinho do qual provavelmente se arrependerá no futuro e falava com aquela mistura de entusiasmo, ingenuidade, determinação e timidez próprios da adolescência. O extraordinário na cena era o fato de ser domingo e Juntao estar indo para uma escola particular, onde receberia aulas de reforço. Mais tarde lá estava ele, com mais vinte alunos sentados em duas fileiras de mesas retangulares, separadas por um corredor. A sala não tinha ar-condicionado, monitor de televisão, microfone ou outro aparato tecnológico: só mesas, cadeiras e uma lousa. A aula era ministrada por um professor jovem, de 27 anos. Foi uma das aulas mais pesadas a que já assisti: sem fazer nenhuma concessão ao fato de ser um domingo de manhã, freneticamente o professor resolveu problemas de geometria por quase duas horas, sem intervalo, sem fazer muitas perguntas aos alunos nem esboçar algum sinal de senso de humor ou apelar para a espetacularização das aulas dos cursinhos brasileiros. Ninguém reclamou, nem se mexeu muito, nem saiu para ir ao banheiro. Depois daquela aula, um intervalo de dez minutos e mais duas horas de aula de química. Assim são todos os fins de semana de Juntao. Assim são os fins de semana de milhões e milhões de adolescentes chineses que lutam para superar milhões de colegas e entrar em uma universidade de primeira linha.

Juntao quer mais. Quer ser um dos melhores advogados do mundo, formar-se na China e fazer mestrado em Stanford, na Califórnia, do outro lado do Oceano Pacífico. Para chegar lá, ele precisa obter um ótimo resultado no Gao Kao, o temido e cobiçado exame nacional de admissão universitária. A nota no Gao Kao determina a universidade na qual o aluno será aceito. Por isso Juntao se esforça tanto. Ele acorda diariamente às 6 da manhã. Enfrenta um trajeto de quase uma hora de ônibus para chegar a sua escola. Entre 7h10 e 8 horas, lê com seus colegas livros didáticos da matéria que está estudando, em sala de aula, sem professor. Às 8 começam as aulas. Perto do meio-dia há uma pausa de uma hora e quinze minutos para o almoço, servido no refeitório da escola. À tarde, mais quatro períodos de aula. Às 5 ele vai para casa. Chega por volta das 18h30. Durante uma hora, descansa, toma banho e janta. Aí faz o dever de casa por, normalmente, três horas diárias. Às 22h30 vai dormir, e o ciclo recomeça no dia seguinte. Descanso, só aos sábados, mas por poucos meses: no ano que vem ele fará Gao Kao e frequentará aulas de reforço aos sábados também. Como praticamente todos os jovens que encontrei, Juntao não tem namorada, não vai a baladas, não usa drogas e não fuma. Apesar do embaraço causado à minha tradutora, que só fez a pergunta depois da minha insistência quando o questionei sobre o que aconteceria se ele, involuntária e inadvertidamente, se apaixonasse por alguém nessa idade, a resposta veio rápida: “Espero até depois do Gao Kao”.

A obsessão dos chineses pelo estudo é o primeiro dado para entender a notícia, divulgada no fim do ano passado, que abalou profundamente toda a compreensão da educação no mundo: Xangai, província chinesa, tinha tirado o primeiro lugar em todas as áreas aferidas (matemática, ciências e leitura) no mais importante e respeitado teste internacional de qualidade educacional, chamado Pisa. O teste, realizado a cada três anos pela OCDE (o clube dos países desenvolvidos), mede o conhecimento de jovens de 15 anos de idade. Começou a ser realizado no ano 2000 em 32 países (entre eles o Brasil, que ficou em último lugar) e, na edição de 2009, contou com 65 participantes (ficamos novamente na rabeira: entre a 53ª e a 57ª posições). Em suas edições anteriores, o topo do ranking era ocupado pelos suspeitos de sempre: Finlândia, Coreia do Sul, Japão, Canadá. O teste confirmava a crença de que renda e qualidade educacional estão intimamente associadas: só os países mais ricos do mundo conseguiriam produzir sistemas top de educação. Mesmo no teste de 2009, países de nível de desenvolvimento semelhante ao chinês ficaram muito atrás dos países ricos: na área de leitura, o foco da edição de 2009, a Turquia ficou em 41º lugar, a Rússia em 43º, o México em 48º e o Brasil em 53º. Xangai ficou em primeiro lugar, com uma dianteira considerável sobre todos os países desenvolvidos, em todas as áreas avaliadas.


Xangai é uma província e não um país, como a maioria dos outros participantes do teste. É uma província mais rica (com renda igual a duas vezes e meia a média chinesa). Mesmo com essas ressalvas, o feito é incrível. A renda per capita de Xangai em 2010 foi de 11 000 dólares. A Coreia do Sul, segundo lugar em leitura, tem renda de quase 21 000. A Finlândia, terceiro lugar, 44 000, quase a mesma de Cingapura, quinto lugar. A renda média de Xangai é igual à brasileira. Ainda que Xangai seja um pequeno pedaço da China (tem um sétimo da área do estado do Rio), com população de 19,2 milhões de pessoas, a província é maior do que 42 dos 65 países participantes do Pisa. É uma região bastante complexa: 11% de seus habitantes vivem na zona rural e 54% dos alunos das primeiras cinco séries são filhos de residentes que vieram de outras províncias para trabalhar em Xangai.

O governo dá as condições e as famílias cuidam de aproveitá-las da melhor maneira. A família de Juntao é um bom exemplo. A mãe trabalha em um escritório de contabilidade e o pai é assistente de logística em uma fábrica. Eles estudaram até o fim do ensino médio. Seus avós maternos foram agricultores, os paternos, operários – estudaram só até o fim do ensino fundamental. Juntao, filho único, mora com os pais em uma quitinete de 40 metros quadrados. O rapaz tem um quarto só para si, para que possa se concentrar nos estudos. Apesar da renda módica dos pais, eles é que pagam as escolas de reforço do filho, e também seus estudos. Na China, só os níveis compulsórios de ensino – do primeiro ao nono ano – são gratuitos. Os três anos de ensino médio são pagos, até nas escolas públicas. Mesmo nos níveis gratuitos, os pais pagam o uniforme, o transporte e a alimentação. O estado dá apenas os livros. Juntao é um bom aluno – média em torno de 7,5 –, mas sua mãe cobra notas melhores. Até quando tira um 9 ou 10, ela diz: “Bom, mas precisa manter o mesmo nível”. O envolvimento emocional e financeiro das famílias chinesas para garantir uma educação de qualidade aos filhos nos proporciona uma grande lição.


Capítulo 2: A sala de aula

A escola tem de ser limpa, silenciosa, simples e eficiente

Três grandes diferenças saltam aos olhos em relação às salas de aula do Brasil. A primeira é que, tanto em Xangai quanto em Pequim, há uma bandeira nacional sobre todo quadro-negro. A segunda é o uso constante do software de apresentação Power Point. A terceira é a vassoura e a pá no fundo de todas as salas. Antes de irem para casa, os alunos têm de deixar a sala de aula limpa. Equipes de limpeza só agem nas áreas comuns.

Acompanhei várias aulas de diversas séries. A liturgia é a mesma. A professora nunca se atrasa, nem os alunos. A professora, de pé, se inclina em direção à classe e diz: “Bom dia, alunos”. Os alunos, então, se levantam, se inclinam em direção à professora e, em uníssono, respondem: “Bom dia, professora”. Não há “turma do fundão”, conversas paralelas nem problemas de disciplina. Para quem está acostumado com salas de aula em que uma minoria presta atenção e vários outros grupelhos paralelos se formam, cada qual falando sobre o seu assunto, é um espanto ver uma sala de aula com rigor chinês. No Brasil ainda se confunde ordem com autoritarismo e a desordem é confundida com liberalidade. Dessa confusão mental dificilmente sai uma aula que preste.

Também não há chamada nas aulas chinesas. Cada turma tem um professor encarregado do contato aprofundado com os alunos e sua família. Uma vez por dia, em horário aleatório, o professor responsável passa pela turma. Se nota uma ausência, ele telefona para os pais do faltante. É um detalhe simples, mas pense em seu efeito. Se um professor tem oito períodos por dia e gasta, digamos, três minutos fazendo a chamada, quase meia hora de aula do dia terá sido desperdiçada com a verificação de presença.


Capítulo 3: Os professores

São todos adeptos do gênio Albert Einstein: o sucesso vem de 1% de inspiração e de 99% de transpiração

Se raramente um aluno falta, um professor, nunca. Cui Minghua, 55 anos, diretora de escola em Pequim, contou-me estar na carreira há 32 anos, dos quais mais de vinte como professora. Em todo esse tempo, tirou uma única licença médica para se submeter a uma operação. Fora isso, jamais deixou de cumprir seu dever diário de educar.

Não há nada de especial na carreira de professor em Xangai. O salário não é exatamente atraente. Nos três primeiros anos de carreira, fica entre 30 000 e 40 000 iuanes por ano, ou algo entre 400 e 500 dólares por mês, quase metade da renda média salarial da região. Nessa fase, muitos professores recorrem a outros trabalhos para complementar a renda. Os melhores podem até dobrá-la dando aulas particulares ou em escolas de reforço. Os professores de nível médio recebem 72 000 iuanes por ano. Os melhores entre eles ganham 90 000. Os bônus por desempenho acima da média podem chegar a 40% do valor do salário. Mas lá, assim como cá, ninguém se torna professor pelo salário.

As diferenças com o Brasil começam na formação do professor. São três grandes diferenças. A primeira é que, na China, a prática de sala de aula se faz muito mais presente do que no Brasil. Ela começa já no segundo ano do curso, quando o futuro professor acompanha aulas em escolas regulares duas vezes por semana durante oito semanas e depois faz estágio de meio ano no penúltimo semestre do curso. A segunda é que as escolas chinesas são mais pragmáticas e diversificadas na escolha de seus pensadores pedagógicos. Há um esforço constante de se abrir ao mundo e ver o que funciona, e pinçar de cada lugar as melhores ideias. O Brasil ainda é dominado quase inteiramente pelo construtivismo. A terceira, e mais decisiva, é a ideologia. Nas escolas chinesas os estudantes têm seu momento diário patriótico e de louvação do Partido Comunista, mas, findo esse ritual, a ideologia sai de cena. No Brasil, os professores são formados em universidades tisnadas por ideologias de esquerda e instados a nunca ser “neutros”, nem nas aulas de matemática ou de física. E eles acreditam nisso. É o desastre costumeiro.

As universidades chinesas entregam professores competentes ao mercado, mas o que os torna excepcionais é o ritmo imenso e colaborativo de trabalho ao qual se submetem quando chegam às escolas. Aí eles passam a integrar um “grupo de estudos dos professores”, que é sem dúvida a inovação mais importante da educação chinesa. Cada professor faz parte de três grupos de estudo. Um com os colegas que ensinam a mesma matéria para a mesma série, que se encontra uma vez por semana para preparar as aulas. O segundo grupo é formado pelos colegas de disciplina de todas as séries da mesma escola. Esse se encontra duas vezes ao mês. O terceiro é formado pelos professores da mesma disciplina e série do seu bairro, que também se encontra duas vezes por mês. Nesses dois últimos grupos, o objetivo é compartilhar práticas de ensino de sucesso. Somando os três grupos, é um regime exigente: são duas reuniões por semana, toda semana. A maioria desses encontros leva entre duas e três horas.

O papel desses grupos é fundamental. Faz com que as melhores técnicas sejam rapidamente compartilhadas em toda a rede, cria uma saudável competição entre professores (os portadores das melhores práticas recebem bônus) e ao mesmo tempo provê uma rede de apoio e compartilhamento para todos os professores, ao contrário do isolamento e do desamparo que vitimam seus colegas brasileiros.


Capítulo 4: O empuxo histórico e cultural

Os chineses sentem que têm contas a acertar com o seu passado, e isso torna sua ascensão mais obstinada, sua tolerância por sacrifícios maior e sua determinação de voltar a rivalizar com as potências coloniais que humilharam a China ainda mais sólida

No meu terceiro dia na China, nosso taxista estava ouvindo um programa de rádio que, pelo tom lento e voz pausada do narrador, me chamou atenção. Perguntei à tradutora do que se tratava e ela me disse que era uma aula de história sobre a dinastia Ming (1368-1644). Imagino que a China seja o único país do mundo em que essa cena possa acontecer. É um país completamente embebido em sua longuíssima história. Quando a dinastia Ming começou, o Brasil ainda era mata virgem e a Europa era uma colcha de principados feudais na Idade das Trevas, mas a China já era um império unificado havia 1 500 anos, já tendo passado por dois períodos de apogeu – as dinastias Han (206 a.C. a 220) e Tang (618-907) – e inventado a pólvora, o papel-moeda e a impressão por prensa móvel. Ajuda muito, portanto, um passado de glórias intelectuais e de apreço pelo estudo e pela disciplina. Graças a seus sábios oficiais, os mandarins, a China foi uma potência mundial, muito superior aos povos vizinhos, que tratava como bárbaros ou súditos, jamais como rivais. Voltar a ser uma potência pelo poder do estudo e do intelecto é para a China apenas uma volta ao passado glorioso.


Capítulo 5: As políticas públicas
Sob Mao Tsé-tung, o estado chinês tentou sufocar o pensamento, a técnica e o saber. Chamaram essa loucura de Revolução Cultural. Agora o esforço é todo na direção correta

O baixo custo relativo é o maior contraste do caso brasileiro com a arrancada chinesa rumo a uma educação que leve o país ao posto de potência mundial de primeira linha. Em 2009, o governo chinês gastou 3,6% do PIB em educação. O setor educacional público brasileiro aumentou seu gasto de 4,1% para 5,3% do PIB nos últimos sete anos e, mesmo com a qualidade do ensino não tendo melhorado em nível remotamente semelhante, a propaganda oficial continua aferrada a esses números como a um triunfo definitivo. Não é. O limite da profundidade do nosso debate sobre educação parece se esgotar na discussão da meta de gastos. Estaremos gastando 7% ou 10% do PIB em educação daqui a dez anos?

A China sacrifica as ideologias sempre que elas conflitam com a busca de resultado. Na educação, isso se expressa na definição do papel do professor. A China se deu conta de que precisava de professores bons e em grande quantidade. Dadas suas carências, montou um sistema em que o professor sai da faculdade mediano, e então é constantemente trabalhado e ajudado para que consiga ministrar aulas excepcionais. Um sistema em que os bons professores e as boas escolas subjugam os maus mestres das escolas ruins. Os chineses entenderam que é melhor ter quarenta alunos com um bom professor do que duas turmas de vinte, uma bem ensinada e outra sob a batuta de um incapaz. O professor é o centro gravitacional de todo o sistema. Pragmatismo, meritocracia, professores bem formados e premiados com dinheiro pelo bom desempenho, estudantes disciplinados e motivados por suas famílias. Essa é a fórmula do combustível da arma secreta chinesa para conquistar o mundo: a educação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário