Ao contrário dos episódios anteriores, em que os exportadores brasileiros foram surpreendidos da noite para o dia por rompantes protecionistas da Argentina, desta vez a nova via crucis a que serão submetidos foi anunciada com antecedência e data marcada: 1º de fevereiro. Desde ontem, entraram em vigor medidas que visam controlar as importações, estabelecendo para praticamente todas elas a necessidade de licença prévia para ingressarem no país. Com a "Declaração Juramentada de Importações", todo importador argentino terá de apresentar um documento indicando quanto pretende comprar no exterior agora e ao longo do ano. As autoridades argentinas foram ambíguas sobre o prazo para a resposta ao pedido e ultimamente se diz que ela será dada entre 72 horas e dez dias.
Os critérios para a liberalização também não estão claros e esse é exatamente um dos objetivos da medida: deixar tudo à discrição do governo argentino e suas conveniências. Medidas de proteção em economias fechadas foram comuns no passado e algo semelhante foi aplicado pelo próprio Brasil há 40 anos (como mostra Roberto Giannetti da Fonseca, Valor, 30 de janeiro). Porém, o mundo mudou e na época o Brasil não fazia parte de uma zona de livre comércio como se pretende o Mercosul. Em uma zona de livre comércio de verdade seria inconcebível as sucessivas determinações unilaterais do governo argentino nos últimos dez anos, em prejuízo das exportações brasileiras, e a ausência de consultas prévias.
A motivação argentina para tamanho grau de centralização administrativa das importações não foram explicitadas, e provavelmente nunca o serão. Nas últimas vezes em que estabeleceu licenças de importação setoriais para bens brasileiros, o governo argentino não cumpriu, e nem vem cumprindo, o prazo máximo de liberação de 60 dias admitido pela Organização Mundial do Comércio. Pode-se imaginar o que deve ocorrer com a exigência burocrática agora estendida a todo o universo importador. Além disso, na maior parte das vezes em que, seja com licenças prévias ou com acordos de restrição de importação, a Argentina restringiu as importações brasileiras, os beneficiados não foram tanto, ou tão só, as indústrias argentinas, mas outros concorrentes do Brasil.
O governo de Cristina Kirchner parece temer uma crise de divisas em breve, mesmo contando com reservas de US$ 43,5 bilhões. Há, de fato, algum motivo para preocupação. O superávit comercial, na casa dos US$ 10 bilhões, deve encolher neste ano, já que os preços de soja, milho e outras commodities, que foram extremamente bons nos últimos anos, devem declinar em 2012 - e a recente seca não ajudará certamente no resultado. A Argentina tem que contar com esses superávits porque o mercado de capitais, outra fonte possível de dólares, está fechado para ela desde a moratória de 2002. E se não tem controle sobre as cotações externas dos principais produtos que vende ao exterior, os burocratas argentinos podem pelo menos ter esse poder sobre as importações.
A centralização administrativa das importações, com vistas a seu racionamento, guarda alguma semelhança com medidas anteriores, como a obrigatoriedade, estabelecida para qualquer cidadão ou empresa que queira comprar dólares no país, de pedir autorização à Receita argentina, que poderá negar ou aprovar o pedido. Diante de uma saída estimada de US$ 20 bilhões ao longo do ano passado, o governo partiu para uma centralização cambial "light", mas com potencial para, em caso de escassez de divisas, escolher e racionar pagamentos em dólar.
Com isso, Cristina Kirchner tem angariado antipatias crescentes de fatias da sociedade e o número de descontentes tende a aumentar. Após gastar muito dinheiro em subsídios e concessões salariais para se reeleger, a presidente resolveu enfrentar a dura realidade - e reduzi-los. As tarifas de energia e transportes, altamente defasadas, estão sendo corrigidas em um ambiente em que a inflação não oficial (a oficial é um conto de fadas) ultrapassa 20%. E a decisão de controlar as importações pode ajudar a diminuir além do previsto o crescimento em 2012.
A reação do Brasil, como quase sempre, será protocolar. Tentará uma negociação para abrandar ao máximo possível as restrições. Sendo o Mercosul o que é e sendo o governo do maior país do bloco tolerante, nada de muito diferente deve se esperar agora.
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