Uma recente decisão do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) garantiu à Kia Motors uma vitória importante na disputa com os
sócios brasileiros da extinta Asia Motors do Brasil (AMB). A coreana, que
controlava a Asia Motors Company (AMC), conseguiu a homologação quase
completa da sentença do comitê de arbitragem da Câmara Internacional de
Comércio (CCI), que condenou a subsidiária brasileira a indenizá-la pelas
perdas decorrentes da fracassada tentativa de instalação de uma fábrica na
Bahia na década de 90. No entanto, o julgamento no STJ também animou o fisco,
que viu na decisão - e em especial no voto da ministra relatora - um
argumento adicional para cobrar uma dívida de R$ 1,7 bilhão deixada pela AMB.
A Asia Motors do Brasil foi criada em 1993 para
importar veículos da Coreia do Sul. Em 1997, dois sócios brasileiros e a Asia
Motors Company, subsidiária da Kia Motors na Coreia, formaram uma joint venture
com o intuito de construir uma fábrica no Brasil. A aliança, com 51% do
capital nas mãos da empresa coreana, foi criada logo depois da entrada em
vigor da lei que estabeleceu o regime automotivo brasileiro. A ideia era
instalar uma fábrica na Bahia em troca de uma redução de 50% no imposto de
importação incidente sobre automóveis e peças trazidos do exterior. Durante
dois anos a AMB usufruiu do benefício fiscal até que, em 1998, o plano de
instalar a fábrica no país foi abortado quando a Kia Motors encerrou os
negócios da AMC em todo o mundo após ser adquirida pela Hyundai.
Ao desistir de instalar a fábrica na Bahia, a
controladora Kia iniciou uma disputa com os sócios brasileiros na CCI com o
intuito de ser ressarcida dos prejuízos pelo investimento fracassado. A
decisão da CCI saiu em 2004 e condenou a AMB a pagar à Kia US$ 79 milhões,
com juros de 6% ao ano, por veículos que recebeu da AMC e outros US$ 10
milhões, com multa de 10% e juros de 1% ao mês, pela assistência técnica
prestada. Parte dos sócios brasileiros também foi condenada a pagar à Kia US$
30 mil por danos morais e US$ 3,9 milhões em custos da arbitragem. Em 19 de
outubro o STJ homologou parcialmente a sentença arbitral, que agora poderá
ser executada no Brasil.
Embora a disputa entre os sócios da AMB tenha
sido definida, ainda resta o desfecho de outra disputa - esta com o fisco
brasileiro. A empresa encerrou suas atividades deixando uma dívida tributária
de cerca de R$ 1,7 bilhão, decorrente do usufruto dos benefícios fiscais do
regime automotivo. As ações de execução da dívida fiscal tramitam na primeira
e na segunda instâncias da Justiça Federal contra a AMB e seus sócios - entre
eles a Kia Motors, que se defende com o argumento de que não tem
responsabilidade pela AMB.
Agora, ao homologar a sentença arbitral, o STJ,
segundo a avaliação do fisco, deixou uma porta aberta para a cobrança da
dívida. Isso porque a ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do
processo julgado na corte especial do STJ, deixou claro que a decisão homologada
não exime a Kia das obrigações que decorrem do negócio da qual era sócia no
Brasil.
Embora o acórdão não tenha sido publicado ainda,
a reportagem do Valor teve acesso a parte do voto da ministra do STJ, que
afirmou que a decisão "não estava a eximir a (Kia Motors) das obrigações
advindas do negócio jurídico legalmente pactuado, e enquanto partícipe da
relação societária, das imposições legais, incluindo-se aí, obviamente,
sujeições tributárias e outras a serem verificadas em espaço próprio e foro
competente do Judiciário brasileiro." E a ministra ainda continuou no
tema ao afirmar que a Kia Motors "está vinculada às obrigações
tributárias assumidas com a atividade da Asia Motors do Brasil e em cuja
participação detinha o controle acionário, controle esse mantido e não
anulado pela decisão arbitral."
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)
está no aguardo da publicação do acórdão do STJ para tomar as providências
necessárias para dar continuidade à cobrança da dívida tributária da AMB.
"Temos cobranças em curso e podemos robustecer a execução com a
decisão", diz o coordenador -geral de representação judicial da PGFN,
Cláudio Xavier Seefelder Filho. Ele confirma que os ministros da corte
tangenciaram a questão tributária na decisão, preservando a relação
tributária entre o fisco e a AMB e seus controladores. "A decisão veio
ao encontro dos esforços da Fazenda na recuperação dos créditos", diz.
Segundo ele, apenas após a publicação é que será avaliado um possível pedido
de sucessão que atinja a Hyundai.
A Hyundai, que acaba de construir os prédios de
uma grande fábrica de automóveis em Piracicaba (SP), a ser inaugurada em
2012, poderá ser cobrada por ter adquirido a Kia Motors num leilão realizado
na Coreia do Sul em 1998. Por meio de porta-voz, a Hyundai Motor Brazil
informou que "não comenta o assunto por não ser parte envolvida em
nenhum momento do processo judicial sobre a dívida da Asia Motors do
Brasil".
Se o fisco avalia que o julgamento foi favorável
à cobrança da dívida, a Kia Motors considera a validação da sentença da CCI
no Brasil uma vitória - já que a única parte da sentença arbitral não
homologada pelos ministros da corte é a que trata de um aumento de capital
promovido pela AMB em 1998 - e que, segundo a decisão da CCI, foi nulo.
"E o STJ não homologou porque também já tinha julgado nulo o
procedimento", diz o advogado Fabiano Robalinho Cavalcanti, do
escritório Sergio Bermudes, que defende a coreana. De acordo com ele, a
partir da publicação do acórdão será possível executar a decisão da CCI no
Brasil - ou seja, instaurar processos de execução contra os sócios
brasileiros da AMB na Justiça Federal. O advogado afirma que somente os
veículos vendidos à AMB e não pagos somam R$ 215 milhões, em valores
atualizados.
Cavalcanti é enfático ao afirmar que a decisão
representa uma completa vitória para a Kia, que tenta há seis anos homologar
a decisão da CCI no Brasil. E que a dívida da AMB com o fisco não foi motivo
de julgamento pelo STJ. "O que os ministros disseram foi que a questão
tributária será avaliada pelo Poder Judiciário", afirma.
O principal sócio brasileiro do que seria uma
fábrica da Asia Motors no Brasil é Washington Armênio Lopes, um empresário do
setor de comércio que, na época da negociação com os coreanos, era importador
da marca Asia. A chance de uma fábrica no Brasil dar certo surgiu com o
sucesso dos veículos utilitários que ele trazia da Coreia - Towner e Topic,
que passavam a representar a maior ameaça da legendária Kombi. Surgiu, então
o acordo de joint venture entre A Asia Motors Corporation, que deteria 51%
das ações da joint venture e o direito de controlar a empresa, e o grupo
brasileiro. A pedra fundamental da futura fábrica acabara de ser lançada em
Camaçari, no terreno hoje ocupado pela Ford, quando a crise atingiu o grupo
coreano.
O advogado Marcus Vinicius Vita Ferreira, do
escritório Wald Associados Advogados, que defende Armenio Lopes, afirma que
vai esperar a publicação do acórdão do STJ para avaliar a decisão. Isso
porque, segundo ele, parte da condenação da CCI recai sobre a própria AMB,
que tem a Kia como sócia. Ele diz ainda que apenas após a publicação decidirá
se vai recorrer da decisão.
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